Uma outra história negra<br>da iniciativa privada
Quando um dia se fizer a história completa da acumulação de capital por grandes empresas privadas e pelo enriquecimento pessoal de muita gente, umas e outros por via das grandes negociatas, ficaremos, decerto, a conhecer melhor os efeitos do nefasto rotativismo político do PS, PSD e CDS em todas as áreas da nossa vida colectiva, incluindo, obviamente, a saúde e, dentro desta, a história, que a seguir se conta, em versão sintetizada, da gestão privada do Hospital Amadora Sintra.
Como cada história tem um princípio, comecemos, pois, pelo princípio. Recuemos ao último governo de Cavaco Silva e retenhamos as seguintes datas: 1989, 1990, 1993, 1994 e 1995.
O Hospital Amadora-Sintra foi adjudicado em 1989 (já lá vão 19 anos) por 7,9 milhões de contos (verba que hoje, sem inflação incluída, corresponderá a cerca de 39,4 milhões de euros). O prazo inicialmente previsto para a construção (40 meses) alargou-se até finais de 1994, tendo o custo final atingido os 20 milhões de contos (verba que hoje, sem inflação incluída, corresponderá a cerca de 100 milhões de euros), derrapagem não explicada, publicamente, na altura do governo de Cavaco Silva, nem pela Inspecção de Saúde, nem pelo Tribunal de Contas, nem pelas autoridades judiciais.
A gestão deste hospital foi, entretanto, entregue à iniciativa privada.
E porquê? Porque o bloco central de interesses, PS e PSD, acolitados pelo o CDS, por via daquilo que designamos de «aproximações sucessivas» foi, ao longo dos anos, aplanando o terreno à privatização. Começaram, em primeiro lugar, em 1989, aquando da 2.ª revisão Constitucional, por transformar a «gratuitidade» do Serviço Nacional de Saúde por «tendencialmente gratuito».
Depois, o governo de Cavaco Silva, alicerçado na sua 1.ª maioria absoluta, fez aprovar a Lei 48/90 (Lei de Bases da Saúde) e, posteriormente, na 2ª. maioria, o Decreto-Lei 11/93 (Estatuto do Serviço Nacional de Saúde). Estavam, assim, criadas as condições para a publicação da Portaria 704/94 através da qual foi aberta a entrada da gestão privada, não apenas nos hospitais públicos, mas em todas as áreas do Serviço Nacional de Saúde, tendo em conta o Artigo 13.º da referida Portaria.
É, pois, neste contexto anti-social, congeminado desde o inicio do ataque às conquistas do 25 de Abril, que, a um ano das eleições de 1995, o governo de Cavaco Silva, mais precisamente, em 14/9/1994, anuncia a abertura do concurso público à gestão do Hospital Amadora-Sintra ao qual, em tempo recorde, respondem, em 18 de Novembro, 2 concorrentes:
- um concorrente foi A Cross, ligada ao grupo de José Roquette, que, por ironia do destino (ou talvez, não), acabou por ser adquirida de forma indirecta pelo Grupo Mello, cujos contornos levaram a Inspecção-Geral de Finanças a escrever, anos mais tarde, que existem «algumas dúvidas sobre a forma como decorreu o referido concurso público, particularmente quando (...) só concorreram duas entidades (agora unidas)». Acresce às dúvidas da Inspecção-Geral de Finanças o facto de essa aquisição de concorrentes derrotados estar proibida pelas próprias normas do concurso;
- o outro concorrente foi um consórcio liderado pelo Grupo Mello que, como atrás foi referido, comprou o seu concorrente.
O conteúdo destas propostas foi analisado – mais rápido do que isto só o negócio da Casino de Lisboa – por uma designada «Comissão de Avaliação» que apresentou o seu relatório em 15 de Março de 1995 a que se segue, passados 13 dias, um ofício da Secretaria de Estado da Saúde informando o respectivo ministro (Paulo Mendo) que «...é atribuída à proposta alternativa do concorrente Império, a pontuação de 19,20 e o 1.º lugar, com base na ponderação de todos os critérios e sub-critérios, classificação cuja fundamentação acolho e com a qual concordo».
Quem é que assina este documento em 28 de Março de 1995?
Quem assina é o Secretário de Estado da Saúde, José Carlos Lopes Martins, que, saído do governo, irá ocupar uma cadeira na direcção do grupo ligado ao consórcio vencedor, embora, formalmente, de acordo com a lei vigente, admitamos que, nesta última função, possa não ter estado ligado ao negócio do Hospital Amadora-Sintra.
Moral da história:
O decisor político e o futuro administrador do consórcio vencedor (José de Mello Saúde) são, precisamente, a mesma pessoa!!! Convém fixar este acontecimento porque, parafraseando a sabedoria popular, «o criminoso volta sempre ao local do crime». Com efeito, passados sete anos, a um outro funcionário do Grupo Mello é-lhe facilitada a troca da cadeira que ocupava nesse Grupo pela cadeira de Ministro da Saúde. Estamos a falar, obviamente, de Luís Filipe Pereira, membro do governo de Durão Barroso.
Mas voltando a 1995 e ao curioso termo utilizado pelo Secretário de Estado do «...concorrente Império...».
Se analisarmos as assinaturas dos intervenientes do consórcio com a declaração daquele governante que se tornou funcionário do Grupo Mello deduz-se que há algo que não bate certo, o que aliás veio a ser confirmado pelo Ministério Público (vide jornal Público de 10/7/2003) ao reconhecer que «a sociedade privada, liderada pelo Grupo Mello esta “ainda não efectuara o seu registo comercial definitivo” Ou seja “não tinha à data (...) personalidade jurídica e capacidade para celebrar aquele negócio». Contudo, o negócio foi feito e, ao que se sabe, ninguém foi molestado, pelo que a minuta do contrato, segundo aquele jornal, «...foi aprovada por Cavaco Silva em 26 de Julho de 1995 e visada pelo Tribunal de Contas a 3 de Outubro do mesmo ano, ou seja, a escassos dois dias das eleições legislativas desse ano...».
A gestão ruinosa do grupo Mello
Estava, assim, formalizado um contrato que iria suportar a gestão ruinosa de um hospital público por uma empresa privada que lesou o Estado, entre 1996 e 2001, em cerca de 75,6 milhões de euros, de acordo com um relatório concluído, em 2002, pela Inspecção-Geral de Finanças, contrato esse «...feito à pressa, por razões politicas», de acordo com declarações proferidas em Julho de 2003 por um ex-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).
Por aquilo que veio a público ficou a saber-se que o valor do contrato, cerca de 7,5 milhões de contos, foi posteriormente corrigido para 7 808 567 contos, embora no orçamento público elaborado, em 19/12/95, pela ARSLVT, tenha sido fixada a verba de
7 078 000 contos. Enfim, pequenas bagatelas...
Acresce mais o seguinte, de acordo com a Inspecção-Geral de Finanças:
- o contrato foi irregularmente visado pelo Tribunal de Contas por não integrar os anexos referentes ao inventário do Hospital. A este propósito é de salientar que a administração privada recebeu da Comissão Instaladora do Hospital Amadora-Sintra consumíveis e outros materiais em stock no valor de 780 000 contos, tendo o Estado sido compensado com, apenas, 327 800 contos;
- foram gastos 15,1 milhões de contos em excesso, resultantes de erros de contas, actualizações de preços indevidos, pagamentos sem autorização;
- foram pagos 750 000 contos à Sociedade Gestora sem que esta tenha prestado qualquer serviço. Registe-se que a gestão do hospital foi entregue em Janeiro de 1996, embora o Grupo Mello tivesse arrecadado aquela verba relativamente a Novembro e Dezembro de 1995! Concluindo: O Estado, através dos serviços do Ministério da Saúde, assinou um contrato com uma empresa que, à data, não tinha personalidade jurídica, acabando, ainda, por pagar 750 000 contos relativos a serviços não prestados!!!
- foi evidenciada a baixa qualidade da gestão privada pois, no hospital, nem sequer havia uma contabilidade analítica o que, como é do conhecimento publico, constitui uma elementar ferramenta de gestão.
Como se tudo isto já não fosse suficiente constataram-se outras irregularidades, como seja o exercício ilegal de medicina privada, a utilização do espaço do hospital por parte de uma entidade – Vitae Clínica – a funcionar desde 1998, com 24 quartos particulares, sem que, para tal, houvesse a devida licença, bem como um problema que irá dar muito que falar quando terminar a gestão privada e que diz respeito ao inventário dos equipamentos e imóveis. Abre-se, aqui, um parêntese para fazer nossa a expressão popular de «...aposto dobrado contra singelo...» como o Estado vai ficar, mais uma vez, lesado entre aquilo que foi o valor dos equipamentos entregues ao Grupo Mello em 1/1/1996 e aquilo que será o equipamento a devolver em 1/1/2009.
Como o Estado
passou de credor a devedor
Face a tão devastadoras acusações, como reagiu o Grupo Mello? Como lhe competia, tendo em conta a obtenção do lucro, a qualquer preço, e tendo, também, em conta o sentido da relação de forças. Não foi por mero acaso que um seu antigo funcionário era, agora, em 2002, o próprio Ministério da Saúde, ou seja, a versão em sentido contrário do percurso do ex-Secretário de Estado que, saindo do governo, passou a funcionário do Grupo Mello. Para que serve, então, perguntamos nós, a dança de cadeiras, entre as grandes empresas e o governo e entre o governo e as grandes empresas?
Mas, insistamos: como reagiu o Grupo Mello?
Reagiu declarando que não era devedor, mas antes credor de 55 milhões de euros!
Face a tal conflito, como dirimi-lo? Recorrer aos tribunais comuns, ou ao Tribunal de Contas tendo em atenção que estavam em causa dinheiros públicos? Nada disso! Recorrer, isso sim, de acordo com uma figura incluída no contrato, a um Tribunal Arbitral, de cuja decisão não haveria recurso, tribunal esse de cariz particular e incompetente para dirimir um conflito que envolvia meios financeiros do Estado. Importa, a este respeito, sublinhar que não havia na legislação norma habilitante para que o contrato incluísse tal clausula, a do chamado Tribunal Arbitral.
E foi assim que o Ministro da Saúde, do governo de Durão Barroso, decidiu, o que motivou, por parte da Federação Nacional dos Médicos o seguinte comentário: «O senhor ministro quer ser árbitro de uma partida onde ele joga por uma das equipas. Ou ele liberta a discussão e deixa de intervir, ou deve deixar de ser ministro.»
Como foi constituído o Tribunal Arbitral?
Foi constituído por:
- Fausto Quadros, pelo Ministério da Saúde;
- Maria de Jesus Serra Lopes, pelo Grupo Mello;
- Calvão da Silva, árbitro presidente e ex-deputado do PSD (que raio de coincidência).
Ao que se sabe estavam envolvidos neste conflito os advogados, Proença de Carvalho, pelo Grupo Mello e Rui Pena, pelo Ministério, este último sócio de José Luís Arnaut, ministro-adjunto de Durão Barroso e colega de Luís Filipe Pereira, o ministro que accionou o Tribunal Arbitral.
As meras coincidências não se ficam por aqui. Tenha-se em consideração que o advogado do Ministério, Rui Pena, foi vogal (não sabemos se ainda é) da Assembleia Geral de uma organização intitulada «Instituto Humanismo e Desenvolvimento» cujo Presidente da Assembleia Geral era (não sabemos se ainda é) o Dr. António Serra Lopes que, por sua vez, era o marido da juíza do Tribunal Arbitral em representação do Grupo Mello. Não é nossa intenção, na valorização destas coincidências, pôr em causa a idoneidade de cada um destes intervenientes, mas, apenas e tão só, apresentar factos. E os factos são os que são, evidenciando, em nossa opinião, que seria mais fácil encontrar uma agulha no palheiro do que, em cerca de 30 000 advogados, constituir um Tribunal Arbitral com tal composição. Importa, contudo, acentuar que, no plano politico, não devemos sobrevalorizar muito a composição do Tribunal Arbitral mas sim denunciar quem armadilhou o contrato de concessão da gestão de um hospital público, sabendo de antemão que não deveria ser um tribunal particular a resolver um eventual conflito que envolvesse interesses do Estado. Quem armadilhou o contrato foi o PSD e quem consentiu, posteriormente, nessa armadilha foi o PS. Estes, sim, são os principais responsáveis pelo facto de o Estado ter passado da situação de credor de 75,6 milhões de euros para devedor ao Grupo Mello de 38 milhões de euros, tanto quanto foi a decisão do Tribunal, ao declarar que quem tinha razão era, precisamente, quem praticou todo um rol de ilicitudes.
O papel do PS na gestão ruinosa
do Hospital Amadora-Sintra
Após a entrega da gestão do Hospital Amadora Sintra ao Grupo Mello, por parte do PSD, sucederam-se, durante o governo de António Guterres, três ministros da Saúde, respectivamente, Maria de Belém Roseira, Manuela Arcanjo e Correia de Campos, e dois ministros das Finanças, Sousa Franco e Pina Moura, a quem devia caber a responsabilidade do acompanhamento do cumprimento do contrato do hospital, o que não aconteceu, salvo quando o escândalo não permitia mais o silenciamento.
Com efeito, só em 2001, no seguimento do processo de encerramento das contas do ano 2000, a ARSLVT denuncia a «gestão ruinosa de dinheiros públicos» e o «favorecimento a entidades privadas», documento de uso interno que, posteriormente, veio dar origem ao já referido demolidor Relatório da Inspecção-Geral de Finanças e que havia sido divulgado em meados de 2002. Surpreendentemente a equipa que levanta a questão da «gestão ruinosa» é, posteriormente, confrontada com duas situações pouco claras: por um lado, é afastada da ARSLVT, pelo ministro da Saúde de então, Correia de Campos, e, por outro lado, o responsável pelo referido estudo nunca foi ouvido pelo Tribunal Arbitral, que se recusou a fazê-lo, mesmo tendo isso sido sugerido pelo Presidente da ARSLVT. Entretanto, em Dezembro de 2001, o Ministro da Saúde, Correia de Campos, solicitou ao Procurador Geral da República que pondere «a oportunidade de abertura de um inquérito criminal no processo de execução do contrato de gestão do Hospital Amadora Sintra», o que veio a acontecer. Tanto quanto de sabe os resultados de tal inquérito ilibam os verdadeiros responsáveis, ou seja, quem armadilhou o contrato - o PSD - e quem, durante cinco anos, não o acompanhou, na devida salvaguardada do dinheiro dos contribuintes, o PS. O Ministério Público concluiu o que era óbvio, que houve delapidação dos bens do Estado, ou, por outra: o Grupo Mello recebeu o que não devia ter recebido, 75,6 milhões de euros a que acresceram mais 38 milhões em função da decisão do Tribunal Arbitral. Só que, no banco dos acusados, não aparecem os responsáveis políticos, nem os autores materiais da referida delapidação. Quem aparece, como responsáveis, são 24 membros dos Conselhos de Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e 2 Delegados junto do Hospital Amadora-Sintra, entre 1995 e 2001, onde se inclui a actual ministra da Saúde, Ana Jorge, a quem o Ministério Público reclama uma indemnização de 3 511 011 euros, acrescidos de 1995 euros de multa. No conjunto dos 26 altos funcionários do Estado, o pedido de indemnizações orça os 59 milhões de euros. Alguém pensa que a actual ministra, que havia sido presidente da ARSLVT entre 1997 e 2000, vai pagar um cêntimo ao Estado pelos pagamentos indevidos ao Grupo Mello? A história vai demonstrar que, como diz o povo, «quem pagou, pagou», ou seja: fomos nós, através dos nossos impostos.
O crime compensa
Entretanto, foi publicamente anunciado pelo Governo que a participação do Grupo Mello na gestão privada do Hospital Amadora-Sintra iria terminar no fim do corrente ano, o que significa que o PS acordou tarde e a más horas. Se o tivesse feito, quando devia, no 1.º governo de António Guterres, o País teria economizado cerca de 114 milhões de euros. Mas, como se diz na gíria popular «...o crime compensa...». O PS, em consonância com tal ditado, prepara-se para, agora, em 2008, no âmbito das chamadas Parcerias Público-Privadas, construir 4 novos hospitais «Braga, Loures, Cascais e Vila Franca de Xira», permitindo que a gestão privada realize mais-valias naquilo que devia ser o cumprimento da alínea c) do n.º 3 do Artigo 64.º da Constituição que, expressamente, refere que incumbe ao Estado «Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos».
Com a adjudicação dos referidos quatro hospitais, o Governo de José Sócrates não só não cumpre com a Constituição como potencia, por quatro, a delapidação do património público verificado no Hospital Amadora-Sintra.
O Hospital Amadora-Sintra foi adjudicado em 1989 (já lá vão 19 anos) por 7,9 milhões de contos (verba que hoje, sem inflação incluída, corresponderá a cerca de 39,4 milhões de euros). O prazo inicialmente previsto para a construção (40 meses) alargou-se até finais de 1994, tendo o custo final atingido os 20 milhões de contos (verba que hoje, sem inflação incluída, corresponderá a cerca de 100 milhões de euros), derrapagem não explicada, publicamente, na altura do governo de Cavaco Silva, nem pela Inspecção de Saúde, nem pelo Tribunal de Contas, nem pelas autoridades judiciais.
A gestão deste hospital foi, entretanto, entregue à iniciativa privada.
E porquê? Porque o bloco central de interesses, PS e PSD, acolitados pelo o CDS, por via daquilo que designamos de «aproximações sucessivas» foi, ao longo dos anos, aplanando o terreno à privatização. Começaram, em primeiro lugar, em 1989, aquando da 2.ª revisão Constitucional, por transformar a «gratuitidade» do Serviço Nacional de Saúde por «tendencialmente gratuito».
Depois, o governo de Cavaco Silva, alicerçado na sua 1.ª maioria absoluta, fez aprovar a Lei 48/90 (Lei de Bases da Saúde) e, posteriormente, na 2ª. maioria, o Decreto-Lei 11/93 (Estatuto do Serviço Nacional de Saúde). Estavam, assim, criadas as condições para a publicação da Portaria 704/94 através da qual foi aberta a entrada da gestão privada, não apenas nos hospitais públicos, mas em todas as áreas do Serviço Nacional de Saúde, tendo em conta o Artigo 13.º da referida Portaria.
É, pois, neste contexto anti-social, congeminado desde o inicio do ataque às conquistas do 25 de Abril, que, a um ano das eleições de 1995, o governo de Cavaco Silva, mais precisamente, em 14/9/1994, anuncia a abertura do concurso público à gestão do Hospital Amadora-Sintra ao qual, em tempo recorde, respondem, em 18 de Novembro, 2 concorrentes:
- um concorrente foi A Cross, ligada ao grupo de José Roquette, que, por ironia do destino (ou talvez, não), acabou por ser adquirida de forma indirecta pelo Grupo Mello, cujos contornos levaram a Inspecção-Geral de Finanças a escrever, anos mais tarde, que existem «algumas dúvidas sobre a forma como decorreu o referido concurso público, particularmente quando (...) só concorreram duas entidades (agora unidas)». Acresce às dúvidas da Inspecção-Geral de Finanças o facto de essa aquisição de concorrentes derrotados estar proibida pelas próprias normas do concurso;
- o outro concorrente foi um consórcio liderado pelo Grupo Mello que, como atrás foi referido, comprou o seu concorrente.
O conteúdo destas propostas foi analisado – mais rápido do que isto só o negócio da Casino de Lisboa – por uma designada «Comissão de Avaliação» que apresentou o seu relatório em 15 de Março de 1995 a que se segue, passados 13 dias, um ofício da Secretaria de Estado da Saúde informando o respectivo ministro (Paulo Mendo) que «...é atribuída à proposta alternativa do concorrente Império, a pontuação de 19,20 e o 1.º lugar, com base na ponderação de todos os critérios e sub-critérios, classificação cuja fundamentação acolho e com a qual concordo».
Quem é que assina este documento em 28 de Março de 1995?
Quem assina é o Secretário de Estado da Saúde, José Carlos Lopes Martins, que, saído do governo, irá ocupar uma cadeira na direcção do grupo ligado ao consórcio vencedor, embora, formalmente, de acordo com a lei vigente, admitamos que, nesta última função, possa não ter estado ligado ao negócio do Hospital Amadora-Sintra.
Moral da história:
O decisor político e o futuro administrador do consórcio vencedor (José de Mello Saúde) são, precisamente, a mesma pessoa!!! Convém fixar este acontecimento porque, parafraseando a sabedoria popular, «o criminoso volta sempre ao local do crime». Com efeito, passados sete anos, a um outro funcionário do Grupo Mello é-lhe facilitada a troca da cadeira que ocupava nesse Grupo pela cadeira de Ministro da Saúde. Estamos a falar, obviamente, de Luís Filipe Pereira, membro do governo de Durão Barroso.
Mas voltando a 1995 e ao curioso termo utilizado pelo Secretário de Estado do «...concorrente Império...».
Se analisarmos as assinaturas dos intervenientes do consórcio com a declaração daquele governante que se tornou funcionário do Grupo Mello deduz-se que há algo que não bate certo, o que aliás veio a ser confirmado pelo Ministério Público (vide jornal Público de 10/7/2003) ao reconhecer que «a sociedade privada, liderada pelo Grupo Mello esta “ainda não efectuara o seu registo comercial definitivo” Ou seja “não tinha à data (...) personalidade jurídica e capacidade para celebrar aquele negócio». Contudo, o negócio foi feito e, ao que se sabe, ninguém foi molestado, pelo que a minuta do contrato, segundo aquele jornal, «...foi aprovada por Cavaco Silva em 26 de Julho de 1995 e visada pelo Tribunal de Contas a 3 de Outubro do mesmo ano, ou seja, a escassos dois dias das eleições legislativas desse ano...».
A gestão ruinosa do grupo Mello
Estava, assim, formalizado um contrato que iria suportar a gestão ruinosa de um hospital público por uma empresa privada que lesou o Estado, entre 1996 e 2001, em cerca de 75,6 milhões de euros, de acordo com um relatório concluído, em 2002, pela Inspecção-Geral de Finanças, contrato esse «...feito à pressa, por razões politicas», de acordo com declarações proferidas em Julho de 2003 por um ex-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).
Por aquilo que veio a público ficou a saber-se que o valor do contrato, cerca de 7,5 milhões de contos, foi posteriormente corrigido para 7 808 567 contos, embora no orçamento público elaborado, em 19/12/95, pela ARSLVT, tenha sido fixada a verba de
7 078 000 contos. Enfim, pequenas bagatelas...
Acresce mais o seguinte, de acordo com a Inspecção-Geral de Finanças:
- o contrato foi irregularmente visado pelo Tribunal de Contas por não integrar os anexos referentes ao inventário do Hospital. A este propósito é de salientar que a administração privada recebeu da Comissão Instaladora do Hospital Amadora-Sintra consumíveis e outros materiais em stock no valor de 780 000 contos, tendo o Estado sido compensado com, apenas, 327 800 contos;
- foram gastos 15,1 milhões de contos em excesso, resultantes de erros de contas, actualizações de preços indevidos, pagamentos sem autorização;
- foram pagos 750 000 contos à Sociedade Gestora sem que esta tenha prestado qualquer serviço. Registe-se que a gestão do hospital foi entregue em Janeiro de 1996, embora o Grupo Mello tivesse arrecadado aquela verba relativamente a Novembro e Dezembro de 1995! Concluindo: O Estado, através dos serviços do Ministério da Saúde, assinou um contrato com uma empresa que, à data, não tinha personalidade jurídica, acabando, ainda, por pagar 750 000 contos relativos a serviços não prestados!!!
- foi evidenciada a baixa qualidade da gestão privada pois, no hospital, nem sequer havia uma contabilidade analítica o que, como é do conhecimento publico, constitui uma elementar ferramenta de gestão.
Como se tudo isto já não fosse suficiente constataram-se outras irregularidades, como seja o exercício ilegal de medicina privada, a utilização do espaço do hospital por parte de uma entidade – Vitae Clínica – a funcionar desde 1998, com 24 quartos particulares, sem que, para tal, houvesse a devida licença, bem como um problema que irá dar muito que falar quando terminar a gestão privada e que diz respeito ao inventário dos equipamentos e imóveis. Abre-se, aqui, um parêntese para fazer nossa a expressão popular de «...aposto dobrado contra singelo...» como o Estado vai ficar, mais uma vez, lesado entre aquilo que foi o valor dos equipamentos entregues ao Grupo Mello em 1/1/1996 e aquilo que será o equipamento a devolver em 1/1/2009.
Como o Estado
passou de credor a devedor
Face a tão devastadoras acusações, como reagiu o Grupo Mello? Como lhe competia, tendo em conta a obtenção do lucro, a qualquer preço, e tendo, também, em conta o sentido da relação de forças. Não foi por mero acaso que um seu antigo funcionário era, agora, em 2002, o próprio Ministério da Saúde, ou seja, a versão em sentido contrário do percurso do ex-Secretário de Estado que, saindo do governo, passou a funcionário do Grupo Mello. Para que serve, então, perguntamos nós, a dança de cadeiras, entre as grandes empresas e o governo e entre o governo e as grandes empresas?
Mas, insistamos: como reagiu o Grupo Mello?
Reagiu declarando que não era devedor, mas antes credor de 55 milhões de euros!
Face a tal conflito, como dirimi-lo? Recorrer aos tribunais comuns, ou ao Tribunal de Contas tendo em atenção que estavam em causa dinheiros públicos? Nada disso! Recorrer, isso sim, de acordo com uma figura incluída no contrato, a um Tribunal Arbitral, de cuja decisão não haveria recurso, tribunal esse de cariz particular e incompetente para dirimir um conflito que envolvia meios financeiros do Estado. Importa, a este respeito, sublinhar que não havia na legislação norma habilitante para que o contrato incluísse tal clausula, a do chamado Tribunal Arbitral.
E foi assim que o Ministro da Saúde, do governo de Durão Barroso, decidiu, o que motivou, por parte da Federação Nacional dos Médicos o seguinte comentário: «O senhor ministro quer ser árbitro de uma partida onde ele joga por uma das equipas. Ou ele liberta a discussão e deixa de intervir, ou deve deixar de ser ministro.»
Como foi constituído o Tribunal Arbitral?
Foi constituído por:
- Fausto Quadros, pelo Ministério da Saúde;
- Maria de Jesus Serra Lopes, pelo Grupo Mello;
- Calvão da Silva, árbitro presidente e ex-deputado do PSD (que raio de coincidência).
Ao que se sabe estavam envolvidos neste conflito os advogados, Proença de Carvalho, pelo Grupo Mello e Rui Pena, pelo Ministério, este último sócio de José Luís Arnaut, ministro-adjunto de Durão Barroso e colega de Luís Filipe Pereira, o ministro que accionou o Tribunal Arbitral.
As meras coincidências não se ficam por aqui. Tenha-se em consideração que o advogado do Ministério, Rui Pena, foi vogal (não sabemos se ainda é) da Assembleia Geral de uma organização intitulada «Instituto Humanismo e Desenvolvimento» cujo Presidente da Assembleia Geral era (não sabemos se ainda é) o Dr. António Serra Lopes que, por sua vez, era o marido da juíza do Tribunal Arbitral em representação do Grupo Mello. Não é nossa intenção, na valorização destas coincidências, pôr em causa a idoneidade de cada um destes intervenientes, mas, apenas e tão só, apresentar factos. E os factos são os que são, evidenciando, em nossa opinião, que seria mais fácil encontrar uma agulha no palheiro do que, em cerca de 30 000 advogados, constituir um Tribunal Arbitral com tal composição. Importa, contudo, acentuar que, no plano politico, não devemos sobrevalorizar muito a composição do Tribunal Arbitral mas sim denunciar quem armadilhou o contrato de concessão da gestão de um hospital público, sabendo de antemão que não deveria ser um tribunal particular a resolver um eventual conflito que envolvesse interesses do Estado. Quem armadilhou o contrato foi o PSD e quem consentiu, posteriormente, nessa armadilha foi o PS. Estes, sim, são os principais responsáveis pelo facto de o Estado ter passado da situação de credor de 75,6 milhões de euros para devedor ao Grupo Mello de 38 milhões de euros, tanto quanto foi a decisão do Tribunal, ao declarar que quem tinha razão era, precisamente, quem praticou todo um rol de ilicitudes.
O papel do PS na gestão ruinosa
do Hospital Amadora-Sintra
Após a entrega da gestão do Hospital Amadora Sintra ao Grupo Mello, por parte do PSD, sucederam-se, durante o governo de António Guterres, três ministros da Saúde, respectivamente, Maria de Belém Roseira, Manuela Arcanjo e Correia de Campos, e dois ministros das Finanças, Sousa Franco e Pina Moura, a quem devia caber a responsabilidade do acompanhamento do cumprimento do contrato do hospital, o que não aconteceu, salvo quando o escândalo não permitia mais o silenciamento.
Com efeito, só em 2001, no seguimento do processo de encerramento das contas do ano 2000, a ARSLVT denuncia a «gestão ruinosa de dinheiros públicos» e o «favorecimento a entidades privadas», documento de uso interno que, posteriormente, veio dar origem ao já referido demolidor Relatório da Inspecção-Geral de Finanças e que havia sido divulgado em meados de 2002. Surpreendentemente a equipa que levanta a questão da «gestão ruinosa» é, posteriormente, confrontada com duas situações pouco claras: por um lado, é afastada da ARSLVT, pelo ministro da Saúde de então, Correia de Campos, e, por outro lado, o responsável pelo referido estudo nunca foi ouvido pelo Tribunal Arbitral, que se recusou a fazê-lo, mesmo tendo isso sido sugerido pelo Presidente da ARSLVT. Entretanto, em Dezembro de 2001, o Ministro da Saúde, Correia de Campos, solicitou ao Procurador Geral da República que pondere «a oportunidade de abertura de um inquérito criminal no processo de execução do contrato de gestão do Hospital Amadora Sintra», o que veio a acontecer. Tanto quanto de sabe os resultados de tal inquérito ilibam os verdadeiros responsáveis, ou seja, quem armadilhou o contrato - o PSD - e quem, durante cinco anos, não o acompanhou, na devida salvaguardada do dinheiro dos contribuintes, o PS. O Ministério Público concluiu o que era óbvio, que houve delapidação dos bens do Estado, ou, por outra: o Grupo Mello recebeu o que não devia ter recebido, 75,6 milhões de euros a que acresceram mais 38 milhões em função da decisão do Tribunal Arbitral. Só que, no banco dos acusados, não aparecem os responsáveis políticos, nem os autores materiais da referida delapidação. Quem aparece, como responsáveis, são 24 membros dos Conselhos de Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e 2 Delegados junto do Hospital Amadora-Sintra, entre 1995 e 2001, onde se inclui a actual ministra da Saúde, Ana Jorge, a quem o Ministério Público reclama uma indemnização de 3 511 011 euros, acrescidos de 1995 euros de multa. No conjunto dos 26 altos funcionários do Estado, o pedido de indemnizações orça os 59 milhões de euros. Alguém pensa que a actual ministra, que havia sido presidente da ARSLVT entre 1997 e 2000, vai pagar um cêntimo ao Estado pelos pagamentos indevidos ao Grupo Mello? A história vai demonstrar que, como diz o povo, «quem pagou, pagou», ou seja: fomos nós, através dos nossos impostos.
O crime compensa
Entretanto, foi publicamente anunciado pelo Governo que a participação do Grupo Mello na gestão privada do Hospital Amadora-Sintra iria terminar no fim do corrente ano, o que significa que o PS acordou tarde e a más horas. Se o tivesse feito, quando devia, no 1.º governo de António Guterres, o País teria economizado cerca de 114 milhões de euros. Mas, como se diz na gíria popular «...o crime compensa...». O PS, em consonância com tal ditado, prepara-se para, agora, em 2008, no âmbito das chamadas Parcerias Público-Privadas, construir 4 novos hospitais «Braga, Loures, Cascais e Vila Franca de Xira», permitindo que a gestão privada realize mais-valias naquilo que devia ser o cumprimento da alínea c) do n.º 3 do Artigo 64.º da Constituição que, expressamente, refere que incumbe ao Estado «Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos».
Com a adjudicação dos referidos quatro hospitais, o Governo de José Sócrates não só não cumpre com a Constituição como potencia, por quatro, a delapidação do património público verificado no Hospital Amadora-Sintra.